terça-feira, 6 de agosto de 2013

Vendo ideias

Vendo ideias


Maria. Era um nome bem comum para uma garota. E ela já havia se acostumado com isso. De fato, essa Maria seria uma Maria comum de 17 anos se não fosse por um motivo: ela podia ver ideias. E ela já havia se acostumado com isso.

Sim, isso mesmo, ela via ideias. Via pequenos homúnculos flutuando ao redor da cabeça das pessoas. Começou quando tinha nove anos. Perguntou ao pai o que eram aquelas “pessoinhas” orbitando as cabeças de praticamente todo tipo de gente, como astronautas presos à gravidade de pequenos planetas cobertos de cabelos. De início o pai achou que era apenas uma brincadeira de criança, mas, como ela insistia no assunto, começou a pensar que a filha tinha algum problema. No dia em que foi levada a uma psiquiatra, Maria percebeu que era a única que podia fazer isso e que as outras pessoas não aceitariam isso muito bem. Mentiu para a mulher de jaleco que lhe fazia perguntas no consultório e nunca mais falou para ninguém o que podia fazer. 

Ela gostava dessa habilidade. E até mesmo se divertia com ela. Sempre dava um sorriso contido quando estava em público e via uma ideia nascer. Uma pequena forma humana que brotava por entre os cabelos da pessoa e ia crescendo aos poucos, se desenvolvendo até atingir alguns centímetros de altura e se soltar da cabeça com um pequeno “PLEC” parecido com o estourar de plástico-bolha (que ela sempre se perguntou se o ouvia de verdade ou se era apenas fruto de sua imaginação). Aí se afastava um pouquinho, virando um pequeno satélite com braços e pernas (algumas não tinham pés, nem cabeça, mas sempre tinham bracinhos e perninhas), flutuando em círculos para sempre.

Aliás, para sempre não: às vezes as ideias sumiam. Simplesmente se esvaneciam, desaparecendo aos poucos para serem eternamente esquecidas por seus criadores. Havia também outra possibilidade: Maria certa vez viu (ou imaginou ver, ainda não tinha certeza) uma ideia sair de sua trajetória circular e flutuar livremente por um tempo, até se prender a alguém mais à frente.

Em todo lugar era possível ver ideias. Os melhores locais eram as galerias de arte, os espetáculos musicais e os encontros literários. O ar ficava coalhado de pequenos cientistas, violinistas, aventureiros, bailarinas, bateristas, magos, monstros, fadas... Eram tantos que Maria sentia que poderia a qualquer momento estender a mão e pegar uma ou outra ideia para si, embora nunca tivesse tentado (e duvidava de que conseguiria). E era interessante ver com uma ideia se transformava a cada quadro, escultura, música ou livro que seu dono observava, ouvia ou lia, às vezes se transmutando em coisas completamente novas.

Mas foi em um ônibus que aconteceu. Naquele mesmo ônibus que ela sempre pegava para voltar do colégio, que sempre ficava preso no mesmo engarrafamento, parado por vários minutos, sempre na mesma rua. A ideia surgiu do nada, como muitas vezes as ideias surgem. Pertencia a alguém três fileiras à frente de Maria, embora ela não conseguisse ver exatamente quem. Começou a nascer pela cabeça e depois veio o resto do corpo. Tinha uma aparência de graça, e ao mesmo tempo de firmeza e segurança. Não era nem gorda nem magra, nem alta nem baixa, nem masculina nem feminina, mas tudo isso ao mesmo tempo, como uma perfeita síntese de coisas opostas em que nada sobra, nem falta. Tinha um certo brilho tênue que Maria nunca havia visto em nenhuma outra ideia e que a tornava ainda mais encantadora.

Depois de se soltar da cabeça, começou a bailar no ar, misturando movimentos calmos e agitados, simétricos e assimétricos, utilizando todas as partes do corpo. Era a coisa mais maravilhosa que Maria já havia visto. Ela chegou a sentir inveja e a pensar em como gostaria de ter uma ideia daquelas só para si, e toda essa fascinação estava estampada em seu próprio rosto de uma forma que já estava chamando a atenção dos passageiros mais próximos.

E aí o trânsito andou. O ônibus deu um solavanco para trás com a aceleração repentina e outro, mais forte ainda, para frente por conta de uma freada brusca que evitou por pouco uma batida no carro da frente... E a ideia desapareceu instantaneamente, esquecida por causa do susto, para nunca mais ser lembrada.


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Sobre este conto


Comecei a escrever este conto logo após o primeiro, mas só fui terminá-lo em julho de 2013. Faltou ânimo e criatividade neste meio tempo, mas quando voltei a escrever (na parte em que falo dos melhores lugares para ver ideias) a coisa fluiu sem muita dificuldade. Ao todo foram uns 3 dias trabalhando no texto.

A inspiração? Eu basicamente só ando de ônibus aqui em Salvador, então tenho bastante tempo pra pensar sobre a vida, o universo e tudo o mais... Mas chega um momento em que você cansa de pensar sobre essas coisas (ou esgota o assunto mesmo) e começa a fazer auto-análise. Eu já passei por esses dois momentos, agora uso o tempo pra criar estórias. E foi em um Estação Mussurunga - Barra 2, preso no eterno engarrafamento do Rio Vermelho, que tive a ideia para esta conto. É bem menos glamouroso que a J. K. Rowling, que teve a ideia de escrever Harry Potter durante uma viagem de trem, mas ainda assim está valendo.

Aqui eu tive que começar a enfrentar uma dificuldade minha no processo de escrita: dar nome aos personagens. Eu queria algo significativo, mas não tão clichê, até que, do nada, me brotou na cabeça o primeiro parágrafo do texto quase pronto. Outra dificuldade foi descrever as ideias, principalmente a que Maria vê no ônibus: como descrever a coisa mais maravilhosa que você já viu na vida? Eu queria passar essa impressão ao leitor, mas sem restringir muito a imaginação dele com um monte de adjetivos. Espero que eu tenha conseguido meu objetivo.

E falando em objetivos, eu com certeza atingi outros dois. O primeiro foi deixar o texto dúbio: muita gente disse que inicialmente achou que o "vendo" do título seria do verbo "vender". E uma amiga me perguntou se as ideias realmente existiam ou eram imaginação da Maria. Ela que deixe de preguiça e tire as próprias conclusões, oras! O segundo objetivo foi o de frustração. Algumas pessoas me disseram que o conto termina muito bruscamente. Se você também sentiu isso... bom, então você sabe muito bem como a Maria se sentiu naquele ônibus.

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