quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Eles dois

Eles dois


- Você me acha bonita?

Droga. A mão parou com a colher na metade do caminho para a boca. A cabeça permaneceu como estava, meio inclinada para frente, e com uma expressão impassível no rosto. Como ele odiava aquele tipo de pergunta! Sempre tinha algo por trás. Será que ela estava interessada nele e estava tentando algum tipo de aproximação? Não, não poderia ser isso. Eram amigos há pouco tempo, mas ela já se sentia confortável o suficiente para revelar que só se interessava por outras mulheres (e que não assumia abertamente porque sabia que os pais não aceitariam bem a notícia, embora fossem ótimas pessoas).

Espetou a colher no sorvete e a deixou lá, mas continuou com a cabeça abaixada. Tinha problemas em elogiar as pessoas porque sabia que quase sempre elas interpretavam isso errado. Uma boa parte achava que o elogio escondia alguma segunda intenção. Outra, que era falsidade ou “puxa-saquismo”. Por isso ele preferia guardar suas opiniões para si mesmo, na maioria das vezes. Poucas pessoas aceitavam um elogio como um simples elogio e nada mais.

Mas agora lá estava ela, à espera de um. E ele se perguntando o porquê. Talvez ela estivesse com a autoestima baixa e quisesse que ele resolvesse esse problema. Talvez ela fosse mais uma dessas ególatras que querem sempre ser notadas por todo mundo. Muitas mulheres fazem isso, sempre perguntando aos homens o que eles acham de suas roupas, seus acessórios ou seus corpos. E ele detestava gente assim, pareciam não ter nada a oferecer além da própria imagem. Não era machista a ponto de dizer que todas as mulheres agem dessa forma, mas também não dava pra negar que existem as que o fazem.

Foi aí que ele lembrou que ela ainda esperava uma resposta. E sentiu que ela estava olhando para ele durante todo esse tempo. Resolveu sondar melhor o território. Levantou a cabeça e a encarou, ainda tentando manter o rosto sem expressão.

- Por que a pergunta?

- Por nada. Só por curiosidade – Ela respondeu meio que dando de ombros. Pelo que ele a conhecia, sabia que ela era uma pessoa legal, então talvez estivesse analisando de mais a situação. Achou melhor arriscar responder sem mais rodeios e ser sincero.

- Acho.

Ela não tinha nenhuma beleza exuberante. Era magra, mas não esquelética. E seu rosto também não era do tipo que chamava a atenção de todos onde ela estivesse, a não ser pelo cabelo, ruivo natural. Mas todas suas formas eram proporcionais, harmoniosas. Ele, que sempre gostou de ir além do óbvio e agir na contramão da maioria, se interessava por mulheres assim. Tinham um tipo de beleza que só consegue apreciar quem não tem uma atitude imediatista, quem gosta de olhar com calma, reparar em pequenos detalhes.

- E o que você acha mais bonito em mim?

Ela ainda não estava satisfeita com a resposta? O sentimento de desconfiança voltou a incomodar, mas ele tentou ignorá-lo e continuou a conversa.

- Bom, no começo eu achava que eram seus cabelos. Você cuida bem deles. E eu sempre tive uma queda por ruivas...

- Owwwn, que fofo por reparar! A maioria dos homens não aprecia o esforço que as mulheres fazem pro cabelo ficar bonito. Se eu gostasse de homens eu até pegava você...

“Pegava”. Que palavra feia! Só não era pior do que “comer”. Coisa ridícula uma pessoa dizer que vai “comer” outra. Como se sexo fosse uma competição em que alguém sempre tem que vencer, subjugar o outro, mandar na situação. Se duas pessoas estão transando por vontade própria, ninguém manda em ninguém, oras! Os dois são iguais, têm os mesmos direitos. Mas lá estava ele de novo, analisando de mais as coisas. Velhos hábitos são difíceis de matar.

- Vou considerar isso como um elogio. Mas, enfim, de uns tempos pra cá eu venho reparando em outras coisas que eu acho bonitas em você – já que já tinha começado o assunto, agora iria até o fim, dane-se a desconfiança.

- Quais?

- Bom, eu às vezes fico admirando eles quando você não está olhando.

- Eles?

- Sim, eles, afinal são dois, né?. 

- Eles... dois? - ela levantou uma sobrancelha. Agora quem estava desconfiada era ela 

- A maioria das pessoas prefere os grandes. E eu era assim até pouco tempo, quando reparei que os seus são pequenos, mas ainda assim são bonitos.

-... pequenos? – as mãos dela largaram o sorvete e se espalmaram sobre a mesa.

- É. E gosto da forma deles também. Não são perfeitamente redondos, e eu acho que um é um pouquinho maior que o outro, mas são charmosos.

- Cara... – ela parecia um tanto quanto revoltada.

- E eu já parei pra olhar suas fotos na internet só pra ficar admirando eles.

- Eu achava que você era diferente, tava até pensando em te apresentar a uma amiga minha. Mas agora vi que você é só mais um tarado!

- Hein? Tarado? Só porque eu acho seus olhos bonitos?

É. Não tinha jeito. Elogios sempre vão ser mal interpretados. Ele tinha razão em manter a boca fechada. Lembraria disso no futuro.


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Sobre este conto


É bom sair um pouco da temática de fantasia. Eu só queria mesmo escrever algo que tivesse duplo sentido, mas que fosse inofensivo (acho que consegui, embora os leitores mais espertos talvez tenham conseguido prever o que aconteceria antes de chegarem ao fim). Bom, é um texto bem trivial, mas talvez eu consiga colocar subliminarmente na sua cabeça algumas reflexões minhas sobre como é chato viver nessa sociedade em que até uma coisa como um elogio vira um problema de tantas formas diferentes.

3 comentários:

  1. cara, lê meu cometário lá na skynerd e avisa se rolar um interesse :)

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    1. Comentário onde? Acho que não recebi nenhuma notificação. Me manda de novo por DM.

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  2. Gostei do texto.
    Elogios podem ser um problema tanto para quem faz, quanto para quem recebe.

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