terça-feira, 10 de setembro de 2013

A Desconhecida

A Desconhecida


- Ei, Edu, você não vai beber nada?

- Não, eu não bebo.

Eduardo detestava bares, mas Leo praticamente o arrastou até ali. 

- Nem uma cervejinha?

- Detesto o gosto.

- Ah, mas ninguém gosta no começo. Você tem que ir bebendo até se acostumar. Aí um dia você começa a gostar.

Eduardo levantou uma sobrancelha e olhou para o novo amigo.

- Quer dizer que eu tenho que beber um troço amargo que eu não gosto até me acostumar, pra aí começar a gostar dele? Que diabos é isso, a versão alimentícia da Síndrome de Estocolmo?

- Síndrome do quê? Cara, você é esquisito, sabe de umas coisas que eu nunca ouvi falar.

Era a sexta-feira da primeira semana na faculdade. A turma toda saiu junta após a última aula do dia pra relaxar e se conhecer melhor. Eduardo estava mais a fim de ir para casa, ficar no meio de um monte de pessoas que ele mal conhecia o deixava mentalmente cansado. Era muita informação nova sobre um monte de gente para lembrar. Mas os colegas começaram um coro de “deixe de ser chato”, “não seja antissocial” e “vai ser divertido”, e, no fim das contas, só foi preciso o braço forte do Leo passar pelo seu pescoço, sem chance de escapatória, para convencê-lo.

E agora essa era a cena: todo mundo bebendo e falando alto ao redor de cinco mesas de plástico colocadas juntas. Eduardo sentado numa ponta, mais afastado do grupo principal, e apenas Leo ao seu lado. E isso era estranho: enquanto um era introvertido e gostava de ficar na dele, passando despercebido no meio da multidão, o outro era um palhaço que mexia com todo mundo, fazendo piadas e chamando atenção, conseguindo ser bem popular onde quer que chegasse. Era uma amizade bem improvável, mas começou por causa de um gosto em comum (embora, talvez, por motivos diferentes) pelo livro “Clube da luta” e outras obras do Chuck Palahniuk.

- Síndrome de Estocolmo. Procura no Google depois, tô com preguiça de explicar.

- Ah, tá. Vou mesmo perder meu tempo com isso.

- Pois devia – um sorriso sardônico começou a se formar – É assim que a gente aprende coisas novas, Leopoldo – Esse era o nome verdadeiro do Leo. Ele detestava ser chamado assim e Eduardo sempre usava isso quando queria irritá-lo. Enquanto o amigo reclamava, aproveitou para olhar em volta. 

A mesa ficava na calçada em frente ao bar, então dava para ver os pedestres que passavam. Observar os vários tipos de pessoas que andavam pela cidade era uma espécie de hobby que ele tinha. E Salvador era um ótimo lugar para isso, com pessoas de todas as cores, todos os tipos físicos, todos os estilos de cabelo. Eduardo se perguntava como seria se mudar para um país europeu, por exemplo, onde a miscigenação não foi tão forte e todo mundo é mais ou menos igual. Seria, no mínimo, tedioso. 

Uma moça com cabelos encaracolados e um penteado estilo Black Power enfeitado por uma flor de crochê caminhava apressada em passinhos curtos. Quando ela olhou na direção do bar, Eduardo a reconheceu. Acenou com a mão, sorrindo, e recebeu em troca outro sorriso e outro aceno. Ela não parou para falar com ele, e ele também não fez menção de se levantar e ir atrás dela.

- Quem é ela?

- Oi?

- A mulher que você acenou? Quem é ela?

- Não sei.

- Como assim não sabe?

- Não sabendo, oras!

- E você acena pra qualquer mulher que você não sabe quem é?

- Tá, não é que eu não saiba quem é. Eu só não conheço ela.

Leo o olhou com a testa franzida, apertando os olhos como alguém que perdeu os óculos e tenta enxergar um objeto distante.

- Hein? Isso não faz sentido.

- Claro que faz. Ela é uma desconhecida minha.

- Você tá de palhaçada com a minha cara, né? Você sabe o nome dela, pelo menos?

- Não. Eu simplesmente chamo ela de “A Desconhecida”.

- Você é maluco... Quem te vê de longe não pensa que você é assim.

Eduardo riu. Ele sabia que tinha lá suas esquisitices, mas quem não tem? “De perto, ninguém é normal”, já dizia Caetano Veloso. E é muito fácil esquecer a própria “anormalidade” quando se aponta a dos outros. Eduardo conseguia pensar em duas ou três esquisitices que já tinha percebido em Leo, mas achou melhor não falar nelas. Preferiu explicar melhor a situação.

- Deixa eu te contar. É o seguinte: de uns seis meses pra cá, em todo evento cultural que eu vou, eu vejo aquela mulher: teatros, museus, shows. Não é nada combinado, a gente simplesmente frequenta os mesmo lugares. Aí chegou uma hora em que começamos a nos reconhecer e acenar um pro outro. Primeiro era só aquela balançada de cabeça, sabe? Tipo um calango quando encontra o outro...

- Hum... E vocês já se falaram alguma vez?

- Não. Eu só ouvi a voz dela uma vez. Ela estava no teatro com uma amiga, eu passei e acenei. Aí a amiga dela perguntou quem eu era. Ela respondeu “Ah, é ‘O Desconhecido’, um cara que eu encontro em um monte de lugares”. Eu achei isso legal e acabei chamando ela de “A Desconhecida” também.

Leo riu pelo nariz e balançou a cabeça.

- Cara, você tem razão de não beber. Se sóbrio você já me vem com uma dessas, imagina bêbado! – Eduardo deu de ombros – Mas você nunca quis conhecer ela de verdade? Se vocês gostam das mesmas coisas, pelo menos a conversa vai ser interessante.

- Não. É uma amizade meio platônica, sabe?

- Explica isso aí.

- É um relacionamento que não precisa se concretizar pra ser legal. A ideia já é o suficiente. Pra mim, basta saber que ela está lá. Aliás, tinha uns dois meses que a gente não se via, eu já estava começando a ficar preocupado achando que ela tinha sofrido um acidente.

- Poderia ter se mudado, também.

- É, ou isso aí. Fico feliz que ela ainda esteja por aí.

- E você sentiria falta dela se ela sumisse de vez?

- Até sentiria, mas eu superaria.

Ficaram em silêncio por alguns instantes. Era um daqueles momentos constrangedores em que o assunto parece acabar e ninguém consegue pensar em nada para dizer. Então, Leo voltou a beber sua cerveja e Eduardo ficou observando os outros colegas fazendo bagunça ao redor da mesa. Ficaram alguns segundos desse jeito.

- Mas ela é bonita, por que você não investe? Eu investiria.

- É, ela é bonita. Mas eu tô confortável com as coisas do jeito que estão. E mulher não serve só pra fazer sexo, larga mão de ser machista!

- Opa, pera lá! Não é machismo. Eu não olho só beleza na hora de escolher uma namorada. Mas também não nego que é importante.

- É, nisso você tem razão.

- Rá! Te peguei nessa! E se ela tentasse dar em cima de você?

- Não sei. Talvez eu pedisse pra deixar as coisas como estão.

- É, você é maluco mesmo. Isso não faz sentido nenhum.

- Bom, não tem nada que obrigue as pessoas a serem racionais o tempo todo.

Leo ia responder, mas uma colega barulhenta chegou e o puxou pelo braço, dizendo que iam colocar uma música e ela queria dançar com ele. Leo não resistiu e se levantou. Eduardo se virou para a rua e continuou a olhar para os pedestres.


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Sobre este conto


Este é um conto parcialmente baseado em fatos reais, mas que não aconteceram comigo. Dedico à minha amiga Helena Matos, que compartilha suas esquisitices em nossas conversas (Eu a chamo de esquisita, mas acho essas histórias que ela me conta interessantes. Logo, não posso negar que eu também sou esquisito - por esse e por vários outros motivos). 

Mais um conto que sai da minha temática habitual de fantasia, mas que nem por isso é menos surreal. E mais um conto baseado em diálogos, nunca é de mais treinar como escrevê-los. Como em outros contos passados, tentei deixar a coisa o mais parecida possível com uma conversa real, o que me obrigou a usar algumas construções e palavras que fazem parte da linguagem oral, mas não da escrita formal. Acho que chamam isso de "licença poética", embora eu venha me questionando se é apenas isso que pode justificar a incorporação de coloquialismos em textos escritos.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Eles dois

Eles dois


- Você me acha bonita?

Droga. A mão parou com a colher na metade do caminho para a boca. A cabeça permaneceu como estava, meio inclinada para frente, e com uma expressão impassível no rosto. Como ele odiava aquele tipo de pergunta! Sempre tinha algo por trás. Será que ela estava interessada nele e estava tentando algum tipo de aproximação? Não, não poderia ser isso. Eram amigos há pouco tempo, mas ela já se sentia confortável o suficiente para revelar que só se interessava por outras mulheres (e que não assumia abertamente porque sabia que os pais não aceitariam bem a notícia, embora fossem ótimas pessoas).

Espetou a colher no sorvete e a deixou lá, mas continuou com a cabeça abaixada. Tinha problemas em elogiar as pessoas porque sabia que quase sempre elas interpretavam isso errado. Uma boa parte achava que o elogio escondia alguma segunda intenção. Outra, que era falsidade ou “puxa-saquismo”. Por isso ele preferia guardar suas opiniões para si mesmo, na maioria das vezes. Poucas pessoas aceitavam um elogio como um simples elogio e nada mais.

Mas agora lá estava ela, à espera de um. E ele se perguntando o porquê. Talvez ela estivesse com a autoestima baixa e quisesse que ele resolvesse esse problema. Talvez ela fosse mais uma dessas ególatras que querem sempre ser notadas por todo mundo. Muitas mulheres fazem isso, sempre perguntando aos homens o que eles acham de suas roupas, seus acessórios ou seus corpos. E ele detestava gente assim, pareciam não ter nada a oferecer além da própria imagem. Não era machista a ponto de dizer que todas as mulheres agem dessa forma, mas também não dava pra negar que existem as que o fazem.

Foi aí que ele lembrou que ela ainda esperava uma resposta. E sentiu que ela estava olhando para ele durante todo esse tempo. Resolveu sondar melhor o território. Levantou a cabeça e a encarou, ainda tentando manter o rosto sem expressão.

- Por que a pergunta?

- Por nada. Só por curiosidade – Ela respondeu meio que dando de ombros. Pelo que ele a conhecia, sabia que ela era uma pessoa legal, então talvez estivesse analisando de mais a situação. Achou melhor arriscar responder sem mais rodeios e ser sincero.

- Acho.

Ela não tinha nenhuma beleza exuberante. Era magra, mas não esquelética. E seu rosto também não era do tipo que chamava a atenção de todos onde ela estivesse, a não ser pelo cabelo, ruivo natural. Mas todas suas formas eram proporcionais, harmoniosas. Ele, que sempre gostou de ir além do óbvio e agir na contramão da maioria, se interessava por mulheres assim. Tinham um tipo de beleza que só consegue apreciar quem não tem uma atitude imediatista, quem gosta de olhar com calma, reparar em pequenos detalhes.

- E o que você acha mais bonito em mim?

Ela ainda não estava satisfeita com a resposta? O sentimento de desconfiança voltou a incomodar, mas ele tentou ignorá-lo e continuou a conversa.

- Bom, no começo eu achava que eram seus cabelos. Você cuida bem deles. E eu sempre tive uma queda por ruivas...

- Owwwn, que fofo por reparar! A maioria dos homens não aprecia o esforço que as mulheres fazem pro cabelo ficar bonito. Se eu gostasse de homens eu até pegava você...

“Pegava”. Que palavra feia! Só não era pior do que “comer”. Coisa ridícula uma pessoa dizer que vai “comer” outra. Como se sexo fosse uma competição em que alguém sempre tem que vencer, subjugar o outro, mandar na situação. Se duas pessoas estão transando por vontade própria, ninguém manda em ninguém, oras! Os dois são iguais, têm os mesmos direitos. Mas lá estava ele de novo, analisando de mais as coisas. Velhos hábitos são difíceis de matar.

- Vou considerar isso como um elogio. Mas, enfim, de uns tempos pra cá eu venho reparando em outras coisas que eu acho bonitas em você – já que já tinha começado o assunto, agora iria até o fim, dane-se a desconfiança.

- Quais?

- Bom, eu às vezes fico admirando eles quando você não está olhando.

- Eles?

- Sim, eles, afinal são dois, né?. 

- Eles... dois? - ela levantou uma sobrancelha. Agora quem estava desconfiada era ela 

- A maioria das pessoas prefere os grandes. E eu era assim até pouco tempo, quando reparei que os seus são pequenos, mas ainda assim são bonitos.

-... pequenos? – as mãos dela largaram o sorvete e se espalmaram sobre a mesa.

- É. E gosto da forma deles também. Não são perfeitamente redondos, e eu acho que um é um pouquinho maior que o outro, mas são charmosos.

- Cara... – ela parecia um tanto quanto revoltada.

- E eu já parei pra olhar suas fotos na internet só pra ficar admirando eles.

- Eu achava que você era diferente, tava até pensando em te apresentar a uma amiga minha. Mas agora vi que você é só mais um tarado!

- Hein? Tarado? Só porque eu acho seus olhos bonitos?

É. Não tinha jeito. Elogios sempre vão ser mal interpretados. Ele tinha razão em manter a boca fechada. Lembraria disso no futuro.


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Sobre este conto


É bom sair um pouco da temática de fantasia. Eu só queria mesmo escrever algo que tivesse duplo sentido, mas que fosse inofensivo (acho que consegui, embora os leitores mais espertos talvez tenham conseguido prever o que aconteceria antes de chegarem ao fim). Bom, é um texto bem trivial, mas talvez eu consiga colocar subliminarmente na sua cabeça algumas reflexões minhas sobre como é chato viver nessa sociedade em que até uma coisa como um elogio vira um problema de tantas formas diferentes.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Toda escolha é uma renúncia

Toda escolha é uma renúncia



Andavam um ao lado do outro na calçada estreita. Mauro estava com uma expressão de confusão no rosto, como se tentasse resolver um enigma muito difícil. 

- Tá, me conta de novo essa história. Mas com calma que eu acho que não entendi direito da primeira vez.

Isaac segurava o guarda-chuva como se fosse uma bengala, tocando a ponta dele no chão a cada passo, com o braço meio esticado ao lado do corpo. Sempre tinha gostado de ver como aqueles cavalheiros ingleses andavam com as bengalas nos filmes, eles tinham porte. Já que Isaac achava que ficaria ridículo andando por aí com uma bengala aos 19 anos em plena Salvador do século XXI, matava a vontade de andar daquele jeito sempre que chovia e ele era obrigado a levar o guarda-chuva.

- Mas também cê é burro, né? Não tem muito pra entender, é simples... Peraí um minutinho.

Uma senhora magra, com um pé torto e mancando apoiada em uma muleta, vinha andando no sentido contrário. Isaac retardou o passo e se posicionou a trás de Mauro para que ela pudesse passar. Segurou o guarda-chuva pela ponta e esperou. Assim que ela se emparelhou com ele, a mão com o guarda-chuva subiu e depois desceu em um rápido movimento circular, acertando em cheio o traseiro da senhora. Ela gritou, revoltada, o mais alto que pode, xingando toda a genealogia de Isaac, mas ele já estava vários metros à frente, caminhando normalmente ao lado de Mauro e falando como se nada tivesse acontecido.

- Começou no Estação Pirajá – Barra 3, aquela miséra de buzu que só vive lotada. Tinha uma mulher sentada que não parava de espirrar, eu tava me espremendo entre o povo e com pressa pra descer porque o motorista tava quase arrastando. E se eu não conseguisse descer naquele ponto ia ter que andar um bocado de volta. Foi na pressa que eu tasquei uma mochilada sem querer na cabeça da mulher e ela sarou da gripe, na hora.

- O que? Você simplesmente bateu na mulher e ela se curou, assim do nada?

- É. Não me pergunte de novo por que, eu também ainda não entendi como isso pode. E na hora eu nem me liguei. Mas foi acontecendo de novo durante o dia, uma hora eu tinha que descobrir o padrão. Quando cheguei na faculdade, tropecei no pé do Gabriel e a herpes na boca dele desapareceu. Dei uma cotovelada num cara na fila do almoço e a gripe dele também sarou. Foi aí que eu comecei a desconfiar...

- ... que você é um tipo de Jesus, com o poder de curar só tocando nas pessoas?

- Por aí, mas não é bem assim. Resolvi testar quando cheguei em casa. Meu irmão tava com a rinite atacada, já tinha gastado umas três caixas de lenço e não tinha antialérgico que resolvesse. Tentei tocar o braço dele por uns segundos pra ver se resolvia, mas ele só fez espirrar mais e dizer “Me largue, tá de viadagem agora, é?”. Aquele merdinha, eu tentando ajudar e é assim que ele me paga? Meti um pescotapa que ele quase cai. Aí a rinite passou!

O rosto de Mauro se abriu em uma expressão de quem finalmente descobriu a solução para um problema de longa data.

- Aaaaah! Então você tem que bater nas pessoas pra elas sararem?

- Sim!

- Pô, até eu vejo que isso não é muito legal. Já levei um tapa seu, dói pra caramba! Quem vai querer se livrar de um problema trocando ele por outro?

- Tem quem queira. É uma questão de aceitar pagar o preço. Cada escolha é uma renúncia.

- Se foi Deus que te deu esse poder, ele te sacaneou!

- Pois é. Mas, enfim, se ele me deu o poder, não me obrigou a usar, eu que fiz porque quis. E até que é legal ajudar os outros.

Pararam e esperaram que o sinal fechasse para que pudessem atravessar a rua. Mais uma vez a expressão no rosto de Mauro mostrava o que ele estava pensando: que o que Isaac havia dito era razoável. Depois de alguns segundos ponderando, ele continuou a conversa.

- É, mas nessa de ajudar os outros é que você acabou indo preso...

- Sim... – Isaac parecia meio revoltado, meio resignado – Eu inventei de ir num hospital lá perto de casa... Mas se fosse só bater nas pessoas pra elas ficarem curadas, tudo bem. Não esqueça que tem a outra condição...

- Ah, a coisa da troca igual?

- Troca equivalente, seu tapado! Eu é que quis chamar assim, você podia chamar até de “lei do equilíbrio do universo” se quisesse, dá na mesma...

- Gosto de “lei da troca equivalente”...

- É, mas eu não gostei nadinha de descobrir que ela existe. Cheguei na emergência do hospital e saí dando tapa em todo mundo, dando jeito em gripe, mal estar, alergia e até num cara que tava lá pra levar pontos em um corte. Aí tinha um velhinho com catarata, já tinha quase que perdido toda a visão. Dei um tapa na cara dele e ele continuou vendo tudo anuviado. Depois de mais duas bolachas eu perdi a paciência e meti-lhe um belo soco... A visão voltou, mas o dente que eu arranquei deve tá no chão do hospital até hoje! No fim das contas o povo ia pra emergência por uma doença qualquer e acabava ficando por causa das coisas que eu ia quebrando, de braço a costela. Mas ainda assim ninguém queria desistir. Quando eu taquei uma cadeirada nas costas de um cara com enfisema pulmonar, as enfermeiras chamaram a polícia...

Mauro riu pelo nariz.

- Tu se ferrou bonito!

- Só não apanhei porque um monte de velhinhos se juntou pra me defender. Eles não queriam deixar me levarem e ficavam dizendo que estavam na fila e que eu não saía de lá enquanto não tivesse atendido todo mundo. Quase rola spray de pimenta e tudo, mas aí as enfermeiras conseguiram acalmar o povo e eu fui pra delegacia.

- Que merda, cê quis ajudar o povo e acaba indo preso.

- Nenhuma boa ação fica sem punição, meu caro.

- Mas quando que cê ia imaginar que ia chegar a esse ponto?

- Até cheguei a pensar, no começo, mas me empolguei batendo nos doentes e resolvi continuar. No fim das contas, cada escolha é uma renúncia.

- Sim, me conta de novo: como foi com o delegado?

Isaac riu baixo. Apesar de tudo, ele ainda conseguia achar graça de toda aquela situação. Sempre teve uma queda pelo humor negro.

- Expliquei tudo e o cara não sabia se me acusava de charlatanismo, agressão física ou tentativa de homicídio. Eu disse que charlatanismo não servia, afinal eu curava as pessoas mesmo. Ele não acreditou e mandou chamar um policial lá com uma virose qualquer. Disse que queria ver com os próprios olhos. Veio um cara que dava dois de mim. Se eu batesse na cara dele era certeza dele devolver a porrada e eu ir parar longe. Acertei um soco no braço dele e foi o suficiente: ele ficou curado e eu continuei com todos os dentes da boca.

- Foi aí que te soltaram?

Um rapaz de camisa listrada andava na mesma calçada que eles, vários metros à frente. Ele parou e começou a procurar algo na mochila, apressado.

- Nem! O delegado disse que fazia um acordo comigo: se eu conseguisse curar a sogra dele e prometesse não quebrar mais nada de ninguém depois, ele me liberava. Mas primeiro ele precisava ir pra casa conversar com a mulher dele e explicar a situação. Se ela topasse, eu ia lá depois. Passei a noite na cadeia por causa disso.

- E aí, como foi dormir no xadrez?

- Vixi! Uma vez só e nunca mais! Doze macho numa cela que era pra caberem quatro! Fiquei a noite toda com o rabo encostado na parede. Pior noite da minha vida. Mas no outro dia o delegado me chamou de novo e disse que o trato tava feito. Falou que a velha tinha problema nos rins e precisava de transplante. Era tão grave que corria o risco de eu matar ela de pancada e não resolver o problema. Por isso que ele falou com a mulher dele: foi ela que tomou a decisão.

- E o resultado...

Estavam mais perto do rapaz de camisa listrada e viram que ele segurava uma bombinha contra asma. Respirava com dificuldade.

- Curei a velha, mas ela tá no hospital em coma... Os médicos dizem que tem chances dela se recuperar, mas que vai levar um bocado de tempo.

- E o delegado disse o quê?

- Que saiu melhor que a encomenda: ele se livrou da sogra, que ele detestava, mas como a velha não morreu, a mulher dele não ficou puta da vida a ponto de rolar divórcio. Quando ela tentou culpar ele pela merda, tudo que ele disse foi “A decisão foi sua. Você fez sua escolha, e toda escolha é uma renúncia”.

- E você?

- Tô livre. Mas já fiz minha escolha: renuncio ao cargo de alto milagreiro de Salvador, nunca mais vou curar nada que uma simples bengalada não resolva. 

Estavam a dois passos do rapaz de camisa listrada. Isaac segurou o guarda-chuva pela ponta.


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Sobre este conto


Dois dias no fim de Julho de 2013 me foram suficientes pra concluir este conto. Imaginei a cena inicial em um dia nublado enquanto andava na rua e vi uma senhora igual à que descrevi no início da estória. Mas antes que você pergunte: eu não bati nela com meu guarda-chuva!

Aqui meu desafio foi escrever diálogos. E como eles são difíceis de escrever! Você tem que fazer um bom esforço consciente para que os personagens não soem todos iguais a... você mesmo. É um exercício de deixar suas múltiplas personalidades tomarem conta. Pensei em usar uma linguagem bem coloquial achando que isso facilitaria o processo, mas só fez dificultar. Quando falamos, repetimos palavras e usamos construções que não ficam bem quando escritas, deixam o texto maçante e ele parece mal-escrito. Evitar isso sem recorrer a um vocabulário muito rebuscado (o que tiraria a naturalidade das falas) é bem complicadinho. Também tive que lutar contra o impulso de corrigir todos os "cê" e "tá" e as faltas de concordância, o que deixaria o texto mais limpo, mas que não faria ninguém acreditar que realmente havia dois jovens soteropolitanos de classe média conversando na sua frente.

Relendo esse texto, eu percebo que fui inconscientemente influenciado por um dos meus filmes (inspirado em um livro) favoritos: Laranja Mecânica. Afinal de contas, onde mais você vê um jovem batendo em velhinhos com uma bengala na companhia de um amigo não muito inteligente? Mas pelo menos o Isaac tem melhores intenções...

Vendo ideias

Vendo ideias


Maria. Era um nome bem comum para uma garota. E ela já havia se acostumado com isso. De fato, essa Maria seria uma Maria comum de 17 anos se não fosse por um motivo: ela podia ver ideias. E ela já havia se acostumado com isso.

Sim, isso mesmo, ela via ideias. Via pequenos homúnculos flutuando ao redor da cabeça das pessoas. Começou quando tinha nove anos. Perguntou ao pai o que eram aquelas “pessoinhas” orbitando as cabeças de praticamente todo tipo de gente, como astronautas presos à gravidade de pequenos planetas cobertos de cabelos. De início o pai achou que era apenas uma brincadeira de criança, mas, como ela insistia no assunto, começou a pensar que a filha tinha algum problema. No dia em que foi levada a uma psiquiatra, Maria percebeu que era a única que podia fazer isso e que as outras pessoas não aceitariam isso muito bem. Mentiu para a mulher de jaleco que lhe fazia perguntas no consultório e nunca mais falou para ninguém o que podia fazer. 

Ela gostava dessa habilidade. E até mesmo se divertia com ela. Sempre dava um sorriso contido quando estava em público e via uma ideia nascer. Uma pequena forma humana que brotava por entre os cabelos da pessoa e ia crescendo aos poucos, se desenvolvendo até atingir alguns centímetros de altura e se soltar da cabeça com um pequeno “PLEC” parecido com o estourar de plástico-bolha (que ela sempre se perguntou se o ouvia de verdade ou se era apenas fruto de sua imaginação). Aí se afastava um pouquinho, virando um pequeno satélite com braços e pernas (algumas não tinham pés, nem cabeça, mas sempre tinham bracinhos e perninhas), flutuando em círculos para sempre.

Aliás, para sempre não: às vezes as ideias sumiam. Simplesmente se esvaneciam, desaparecendo aos poucos para serem eternamente esquecidas por seus criadores. Havia também outra possibilidade: Maria certa vez viu (ou imaginou ver, ainda não tinha certeza) uma ideia sair de sua trajetória circular e flutuar livremente por um tempo, até se prender a alguém mais à frente.

Em todo lugar era possível ver ideias. Os melhores locais eram as galerias de arte, os espetáculos musicais e os encontros literários. O ar ficava coalhado de pequenos cientistas, violinistas, aventureiros, bailarinas, bateristas, magos, monstros, fadas... Eram tantos que Maria sentia que poderia a qualquer momento estender a mão e pegar uma ou outra ideia para si, embora nunca tivesse tentado (e duvidava de que conseguiria). E era interessante ver com uma ideia se transformava a cada quadro, escultura, música ou livro que seu dono observava, ouvia ou lia, às vezes se transmutando em coisas completamente novas.

Mas foi em um ônibus que aconteceu. Naquele mesmo ônibus que ela sempre pegava para voltar do colégio, que sempre ficava preso no mesmo engarrafamento, parado por vários minutos, sempre na mesma rua. A ideia surgiu do nada, como muitas vezes as ideias surgem. Pertencia a alguém três fileiras à frente de Maria, embora ela não conseguisse ver exatamente quem. Começou a nascer pela cabeça e depois veio o resto do corpo. Tinha uma aparência de graça, e ao mesmo tempo de firmeza e segurança. Não era nem gorda nem magra, nem alta nem baixa, nem masculina nem feminina, mas tudo isso ao mesmo tempo, como uma perfeita síntese de coisas opostas em que nada sobra, nem falta. Tinha um certo brilho tênue que Maria nunca havia visto em nenhuma outra ideia e que a tornava ainda mais encantadora.

Depois de se soltar da cabeça, começou a bailar no ar, misturando movimentos calmos e agitados, simétricos e assimétricos, utilizando todas as partes do corpo. Era a coisa mais maravilhosa que Maria já havia visto. Ela chegou a sentir inveja e a pensar em como gostaria de ter uma ideia daquelas só para si, e toda essa fascinação estava estampada em seu próprio rosto de uma forma que já estava chamando a atenção dos passageiros mais próximos.

E aí o trânsito andou. O ônibus deu um solavanco para trás com a aceleração repentina e outro, mais forte ainda, para frente por conta de uma freada brusca que evitou por pouco uma batida no carro da frente... E a ideia desapareceu instantaneamente, esquecida por causa do susto, para nunca mais ser lembrada.


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Sobre este conto


Comecei a escrever este conto logo após o primeiro, mas só fui terminá-lo em julho de 2013. Faltou ânimo e criatividade neste meio tempo, mas quando voltei a escrever (na parte em que falo dos melhores lugares para ver ideias) a coisa fluiu sem muita dificuldade. Ao todo foram uns 3 dias trabalhando no texto.

A inspiração? Eu basicamente só ando de ônibus aqui em Salvador, então tenho bastante tempo pra pensar sobre a vida, o universo e tudo o mais... Mas chega um momento em que você cansa de pensar sobre essas coisas (ou esgota o assunto mesmo) e começa a fazer auto-análise. Eu já passei por esses dois momentos, agora uso o tempo pra criar estórias. E foi em um Estação Mussurunga - Barra 2, preso no eterno engarrafamento do Rio Vermelho, que tive a ideia para esta conto. É bem menos glamouroso que a J. K. Rowling, que teve a ideia de escrever Harry Potter durante uma viagem de trem, mas ainda assim está valendo.

Aqui eu tive que começar a enfrentar uma dificuldade minha no processo de escrita: dar nome aos personagens. Eu queria algo significativo, mas não tão clichê, até que, do nada, me brotou na cabeça o primeiro parágrafo do texto quase pronto. Outra dificuldade foi descrever as ideias, principalmente a que Maria vê no ônibus: como descrever a coisa mais maravilhosa que você já viu na vida? Eu queria passar essa impressão ao leitor, mas sem restringir muito a imaginação dele com um monte de adjetivos. Espero que eu tenha conseguido meu objetivo.

E falando em objetivos, eu com certeza atingi outros dois. O primeiro foi deixar o texto dúbio: muita gente disse que inicialmente achou que o "vendo" do título seria do verbo "vender". E uma amiga me perguntou se as ideias realmente existiam ou eram imaginação da Maria. Ela que deixe de preguiça e tire as próprias conclusões, oras! O segundo objetivo foi o de frustração. Algumas pessoas me disseram que o conto termina muito bruscamente. Se você também sentiu isso... bom, então você sabe muito bem como a Maria se sentiu naquele ônibus.

A menina que foi trocada por meia dúzia de ovos

A menina que foi trocada por meia dúzia de ovos


Foi acordada pela mãe às 3 horas da manhã com a indelicadeza habitual.

- Anda logo que temos que chegar cedo.

O rosto sardento mal teve tempo de se olhar no espelho, à luz de uma vela, para arrumar o cabelo cor de cobre. Colocou o vestido, feito com o que havia sido o forro de um velho colchão, e correu para acompanhar a mãe, que já esperava impacientemente na porta.

O caminho até a feira foi percorrido em silêncio. Ela carregou, sem reclamar, um caixote pesado mais ou menos da sua própria altura. A mãe não levava nada nas mãos. Quando chegaram ao local, escolheram um pequeno espaço próximo à entrada. Ela subiu no caixote, onde ficava mais visível para todos que passavam. Enquanto a mãe negociava com possíveis clientes, respondendo a suas perguntas, ela observava os outros feirantes.

Um homem de turbante vendia sofás que não paravam quietos. Ficavam sempre correndo em círculos ao redor dele em passinhos tão apressados quanto suas pernas curtas permitiam, mas nunca se distanciavam muito.

-... sim, ela sabe limpar a casa, lavar roupas e cozinhar...

Outro senhor, vestindo uma toga, estava tendo problemas para controlar sua mercadoria: pequenas árvores de um metro e meio de altura com copa em forma de guarda-chuva que insistiam em soltar um jato de ar pela base, fazendo um som parecido com um estouro e subindo cerca de dez metros no ar, caindo suavemente a vários metros de distância. Vez ou outra uma delas se empolgava e o estouro fazia com que voasse por dezenas de metros e fosse cair no mar, do outro lado da feira.

-... e que diabos você quer fazer com uma malabarista? Não, ela não sabe nenhum desses truques idiotas!

Vinha chegando à feira uma mulher que trazia presas a coleiras várias mochilas. Algumas latiam animadas, outras paravam para cheirar um ou outro poste. Um garoto tentou acariciar uma menos amigável e acabou ficando com a marca arredondada do zíper no braço quando ela o atacou.

-... não, por esse preço é impossível! Ela vale mais que isso!

Um grupo de engravatados barganhava com lagartos, tentando conseguir um desconto na compra de grilos fritos. Uma velha senhora terminava de montar sua barraca e agora colocava à mostra metades de frutas carnosas por fora e espinhentas por dentro. Um ferreiro exibia uma coleção de dedais primorosamente trabalhados.

Olhou de volta para a mãe. Ela parecia ter fechado negócio com um senhor magro, de cabelos muito brancos e vestindo apenas uma saia de palha e um colar de dentes.

-... então está fechado. Meia dúzia de ovos e ela é toda sua! Mas o caixote não está incluso.

O senhor pagou o preço e ela foi com ele. Enquanto se afastavam, virou o rosto pra trás e olhou a mãe com tristeza. A mãe olhou de volta, mas não deixava transparecer nenhuma emoção no rosto.



Encontraram-se numa praça não muito longe da feira, poucas horas depois.

- Teve problemas pra se livrar desse?

- Não. Foi só sair correndo, ele não tinha forças pra vir atrás de mim.

- Ótimo. Beba isso.

Ela pegou o cantil que a mãe lhe estendia e bebeu. A pele escureceu. O cabelo ficou preto e encurtou. Logo agora que ela estava se acostumando com eles ruivos...! Mas sabia que também se acostumaria com o cabelo crespo e passaria a gostar deles. Pelo menos até a próxima feira, dali a um mês. Depois ela provavelmente ficaria loira, ou quem sabe com feições orientais. Não importava. Ela ganharia uma aparência nova e sua mãe conseguiria outra meia dúzia de ovos. Pegou o caixote do chão e se apressou para acompanhá-la.


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Sobre este conto


Este conto foi escrito em pouco menos de uma hora em março de 20013 e foi o primeiro texto literário que escrevi desde saí do ensino médio. Sempre tive várias ideias de personagens e situações, mas nunca tinha feito o exercício de colocar tudo no papel por achar que histórias deviam ser compridas e complicadas. Depois de muito ler os contos de Neil Gaiman e perceber que isso era besteira, resolvi enfrentar meu medo de escrever só por prazer e dar a cara a tapa mostrando o conto para meus amigos, que gostaram bastante e pediram por mais.

A inspiração veio de uma amiga que me contou um sonho de quando ela era criança: sua mãe a acordava de madrugada e a levava para uma feira livre, em que ela era trocada por meia dúzia de ovos. Achei o conceito bem engraçado, embora devesse ser bem assustador para ela na época. Meu objetivo inicial era fazer um conto de humor, mas acabou saindo algo bem mais sombrio e toda vez que o releio percebo que a personagem principal tem uma vida bem mais miserável e infeliz do que eu pretendia enquanto escrevia. É interessante como colocamos mais possibilidades de interpretação do que queremos nos textos e só depois nos damos conta disso. Aliás, eu acredito que uma estória não é apenas o que o autor escreve, mas também a interpretação que o leitor faz, então não me peçam pra explicar pequenos detalhes dos meus contos: me explique você o que você achou deles.

Já que a ideia de uma criança ser trocada por algo tão simplório quanto ovos parece um absurdo, resolvi explorar isso e fazer um conto de fantasia. Assim dava pra colocar várias outras imagens absurdas que eu tinha em mente: as árvores "a jato" são fruto de um sonho meu, por exemplo. O gênero de fantasia é ótimo para subverter as regras do mundo real, e ainda me dá a liberdade de não precisar explicar explicitamente as regras do universo que criei: mais uma liberdade para o leitor interpretar como quiser! 

Como ninguém cria nada do zero, tive influências e usei elementos de outros autores que já li. Por exemplo: quem conhece "Lugar nenhum", do Neil Gaiman, deve ter reconhecido bastante da Feira dos Trolls, o que foi uma referência feita meio que "sem querer querendo".