terça-feira, 10 de setembro de 2013

A Desconhecida

A Desconhecida


- Ei, Edu, você não vai beber nada?

- Não, eu não bebo.

Eduardo detestava bares, mas Leo praticamente o arrastou até ali. 

- Nem uma cervejinha?

- Detesto o gosto.

- Ah, mas ninguém gosta no começo. Você tem que ir bebendo até se acostumar. Aí um dia você começa a gostar.

Eduardo levantou uma sobrancelha e olhou para o novo amigo.

- Quer dizer que eu tenho que beber um troço amargo que eu não gosto até me acostumar, pra aí começar a gostar dele? Que diabos é isso, a versão alimentícia da Síndrome de Estocolmo?

- Síndrome do quê? Cara, você é esquisito, sabe de umas coisas que eu nunca ouvi falar.

Era a sexta-feira da primeira semana na faculdade. A turma toda saiu junta após a última aula do dia pra relaxar e se conhecer melhor. Eduardo estava mais a fim de ir para casa, ficar no meio de um monte de pessoas que ele mal conhecia o deixava mentalmente cansado. Era muita informação nova sobre um monte de gente para lembrar. Mas os colegas começaram um coro de “deixe de ser chato”, “não seja antissocial” e “vai ser divertido”, e, no fim das contas, só foi preciso o braço forte do Leo passar pelo seu pescoço, sem chance de escapatória, para convencê-lo.

E agora essa era a cena: todo mundo bebendo e falando alto ao redor de cinco mesas de plástico colocadas juntas. Eduardo sentado numa ponta, mais afastado do grupo principal, e apenas Leo ao seu lado. E isso era estranho: enquanto um era introvertido e gostava de ficar na dele, passando despercebido no meio da multidão, o outro era um palhaço que mexia com todo mundo, fazendo piadas e chamando atenção, conseguindo ser bem popular onde quer que chegasse. Era uma amizade bem improvável, mas começou por causa de um gosto em comum (embora, talvez, por motivos diferentes) pelo livro “Clube da luta” e outras obras do Chuck Palahniuk.

- Síndrome de Estocolmo. Procura no Google depois, tô com preguiça de explicar.

- Ah, tá. Vou mesmo perder meu tempo com isso.

- Pois devia – um sorriso sardônico começou a se formar – É assim que a gente aprende coisas novas, Leopoldo – Esse era o nome verdadeiro do Leo. Ele detestava ser chamado assim e Eduardo sempre usava isso quando queria irritá-lo. Enquanto o amigo reclamava, aproveitou para olhar em volta. 

A mesa ficava na calçada em frente ao bar, então dava para ver os pedestres que passavam. Observar os vários tipos de pessoas que andavam pela cidade era uma espécie de hobby que ele tinha. E Salvador era um ótimo lugar para isso, com pessoas de todas as cores, todos os tipos físicos, todos os estilos de cabelo. Eduardo se perguntava como seria se mudar para um país europeu, por exemplo, onde a miscigenação não foi tão forte e todo mundo é mais ou menos igual. Seria, no mínimo, tedioso. 

Uma moça com cabelos encaracolados e um penteado estilo Black Power enfeitado por uma flor de crochê caminhava apressada em passinhos curtos. Quando ela olhou na direção do bar, Eduardo a reconheceu. Acenou com a mão, sorrindo, e recebeu em troca outro sorriso e outro aceno. Ela não parou para falar com ele, e ele também não fez menção de se levantar e ir atrás dela.

- Quem é ela?

- Oi?

- A mulher que você acenou? Quem é ela?

- Não sei.

- Como assim não sabe?

- Não sabendo, oras!

- E você acena pra qualquer mulher que você não sabe quem é?

- Tá, não é que eu não saiba quem é. Eu só não conheço ela.

Leo o olhou com a testa franzida, apertando os olhos como alguém que perdeu os óculos e tenta enxergar um objeto distante.

- Hein? Isso não faz sentido.

- Claro que faz. Ela é uma desconhecida minha.

- Você tá de palhaçada com a minha cara, né? Você sabe o nome dela, pelo menos?

- Não. Eu simplesmente chamo ela de “A Desconhecida”.

- Você é maluco... Quem te vê de longe não pensa que você é assim.

Eduardo riu. Ele sabia que tinha lá suas esquisitices, mas quem não tem? “De perto, ninguém é normal”, já dizia Caetano Veloso. E é muito fácil esquecer a própria “anormalidade” quando se aponta a dos outros. Eduardo conseguia pensar em duas ou três esquisitices que já tinha percebido em Leo, mas achou melhor não falar nelas. Preferiu explicar melhor a situação.

- Deixa eu te contar. É o seguinte: de uns seis meses pra cá, em todo evento cultural que eu vou, eu vejo aquela mulher: teatros, museus, shows. Não é nada combinado, a gente simplesmente frequenta os mesmo lugares. Aí chegou uma hora em que começamos a nos reconhecer e acenar um pro outro. Primeiro era só aquela balançada de cabeça, sabe? Tipo um calango quando encontra o outro...

- Hum... E vocês já se falaram alguma vez?

- Não. Eu só ouvi a voz dela uma vez. Ela estava no teatro com uma amiga, eu passei e acenei. Aí a amiga dela perguntou quem eu era. Ela respondeu “Ah, é ‘O Desconhecido’, um cara que eu encontro em um monte de lugares”. Eu achei isso legal e acabei chamando ela de “A Desconhecida” também.

Leo riu pelo nariz e balançou a cabeça.

- Cara, você tem razão de não beber. Se sóbrio você já me vem com uma dessas, imagina bêbado! – Eduardo deu de ombros – Mas você nunca quis conhecer ela de verdade? Se vocês gostam das mesmas coisas, pelo menos a conversa vai ser interessante.

- Não. É uma amizade meio platônica, sabe?

- Explica isso aí.

- É um relacionamento que não precisa se concretizar pra ser legal. A ideia já é o suficiente. Pra mim, basta saber que ela está lá. Aliás, tinha uns dois meses que a gente não se via, eu já estava começando a ficar preocupado achando que ela tinha sofrido um acidente.

- Poderia ter se mudado, também.

- É, ou isso aí. Fico feliz que ela ainda esteja por aí.

- E você sentiria falta dela se ela sumisse de vez?

- Até sentiria, mas eu superaria.

Ficaram em silêncio por alguns instantes. Era um daqueles momentos constrangedores em que o assunto parece acabar e ninguém consegue pensar em nada para dizer. Então, Leo voltou a beber sua cerveja e Eduardo ficou observando os outros colegas fazendo bagunça ao redor da mesa. Ficaram alguns segundos desse jeito.

- Mas ela é bonita, por que você não investe? Eu investiria.

- É, ela é bonita. Mas eu tô confortável com as coisas do jeito que estão. E mulher não serve só pra fazer sexo, larga mão de ser machista!

- Opa, pera lá! Não é machismo. Eu não olho só beleza na hora de escolher uma namorada. Mas também não nego que é importante.

- É, nisso você tem razão.

- Rá! Te peguei nessa! E se ela tentasse dar em cima de você?

- Não sei. Talvez eu pedisse pra deixar as coisas como estão.

- É, você é maluco mesmo. Isso não faz sentido nenhum.

- Bom, não tem nada que obrigue as pessoas a serem racionais o tempo todo.

Leo ia responder, mas uma colega barulhenta chegou e o puxou pelo braço, dizendo que iam colocar uma música e ela queria dançar com ele. Leo não resistiu e se levantou. Eduardo se virou para a rua e continuou a olhar para os pedestres.


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Sobre este conto


Este é um conto parcialmente baseado em fatos reais, mas que não aconteceram comigo. Dedico à minha amiga Helena Matos, que compartilha suas esquisitices em nossas conversas (Eu a chamo de esquisita, mas acho essas histórias que ela me conta interessantes. Logo, não posso negar que eu também sou esquisito - por esse e por vários outros motivos). 

Mais um conto que sai da minha temática habitual de fantasia, mas que nem por isso é menos surreal. E mais um conto baseado em diálogos, nunca é de mais treinar como escrevê-los. Como em outros contos passados, tentei deixar a coisa o mais parecida possível com uma conversa real, o que me obrigou a usar algumas construções e palavras que fazem parte da linguagem oral, mas não da escrita formal. Acho que chamam isso de "licença poética", embora eu venha me questionando se é apenas isso que pode justificar a incorporação de coloquialismos em textos escritos.