terça-feira, 6 de agosto de 2013

Toda escolha é uma renúncia

Toda escolha é uma renúncia



Andavam um ao lado do outro na calçada estreita. Mauro estava com uma expressão de confusão no rosto, como se tentasse resolver um enigma muito difícil. 

- Tá, me conta de novo essa história. Mas com calma que eu acho que não entendi direito da primeira vez.

Isaac segurava o guarda-chuva como se fosse uma bengala, tocando a ponta dele no chão a cada passo, com o braço meio esticado ao lado do corpo. Sempre tinha gostado de ver como aqueles cavalheiros ingleses andavam com as bengalas nos filmes, eles tinham porte. Já que Isaac achava que ficaria ridículo andando por aí com uma bengala aos 19 anos em plena Salvador do século XXI, matava a vontade de andar daquele jeito sempre que chovia e ele era obrigado a levar o guarda-chuva.

- Mas também cê é burro, né? Não tem muito pra entender, é simples... Peraí um minutinho.

Uma senhora magra, com um pé torto e mancando apoiada em uma muleta, vinha andando no sentido contrário. Isaac retardou o passo e se posicionou a trás de Mauro para que ela pudesse passar. Segurou o guarda-chuva pela ponta e esperou. Assim que ela se emparelhou com ele, a mão com o guarda-chuva subiu e depois desceu em um rápido movimento circular, acertando em cheio o traseiro da senhora. Ela gritou, revoltada, o mais alto que pode, xingando toda a genealogia de Isaac, mas ele já estava vários metros à frente, caminhando normalmente ao lado de Mauro e falando como se nada tivesse acontecido.

- Começou no Estação Pirajá – Barra 3, aquela miséra de buzu que só vive lotada. Tinha uma mulher sentada que não parava de espirrar, eu tava me espremendo entre o povo e com pressa pra descer porque o motorista tava quase arrastando. E se eu não conseguisse descer naquele ponto ia ter que andar um bocado de volta. Foi na pressa que eu tasquei uma mochilada sem querer na cabeça da mulher e ela sarou da gripe, na hora.

- O que? Você simplesmente bateu na mulher e ela se curou, assim do nada?

- É. Não me pergunte de novo por que, eu também ainda não entendi como isso pode. E na hora eu nem me liguei. Mas foi acontecendo de novo durante o dia, uma hora eu tinha que descobrir o padrão. Quando cheguei na faculdade, tropecei no pé do Gabriel e a herpes na boca dele desapareceu. Dei uma cotovelada num cara na fila do almoço e a gripe dele também sarou. Foi aí que eu comecei a desconfiar...

- ... que você é um tipo de Jesus, com o poder de curar só tocando nas pessoas?

- Por aí, mas não é bem assim. Resolvi testar quando cheguei em casa. Meu irmão tava com a rinite atacada, já tinha gastado umas três caixas de lenço e não tinha antialérgico que resolvesse. Tentei tocar o braço dele por uns segundos pra ver se resolvia, mas ele só fez espirrar mais e dizer “Me largue, tá de viadagem agora, é?”. Aquele merdinha, eu tentando ajudar e é assim que ele me paga? Meti um pescotapa que ele quase cai. Aí a rinite passou!

O rosto de Mauro se abriu em uma expressão de quem finalmente descobriu a solução para um problema de longa data.

- Aaaaah! Então você tem que bater nas pessoas pra elas sararem?

- Sim!

- Pô, até eu vejo que isso não é muito legal. Já levei um tapa seu, dói pra caramba! Quem vai querer se livrar de um problema trocando ele por outro?

- Tem quem queira. É uma questão de aceitar pagar o preço. Cada escolha é uma renúncia.

- Se foi Deus que te deu esse poder, ele te sacaneou!

- Pois é. Mas, enfim, se ele me deu o poder, não me obrigou a usar, eu que fiz porque quis. E até que é legal ajudar os outros.

Pararam e esperaram que o sinal fechasse para que pudessem atravessar a rua. Mais uma vez a expressão no rosto de Mauro mostrava o que ele estava pensando: que o que Isaac havia dito era razoável. Depois de alguns segundos ponderando, ele continuou a conversa.

- É, mas nessa de ajudar os outros é que você acabou indo preso...

- Sim... – Isaac parecia meio revoltado, meio resignado – Eu inventei de ir num hospital lá perto de casa... Mas se fosse só bater nas pessoas pra elas ficarem curadas, tudo bem. Não esqueça que tem a outra condição...

- Ah, a coisa da troca igual?

- Troca equivalente, seu tapado! Eu é que quis chamar assim, você podia chamar até de “lei do equilíbrio do universo” se quisesse, dá na mesma...

- Gosto de “lei da troca equivalente”...

- É, mas eu não gostei nadinha de descobrir que ela existe. Cheguei na emergência do hospital e saí dando tapa em todo mundo, dando jeito em gripe, mal estar, alergia e até num cara que tava lá pra levar pontos em um corte. Aí tinha um velhinho com catarata, já tinha quase que perdido toda a visão. Dei um tapa na cara dele e ele continuou vendo tudo anuviado. Depois de mais duas bolachas eu perdi a paciência e meti-lhe um belo soco... A visão voltou, mas o dente que eu arranquei deve tá no chão do hospital até hoje! No fim das contas o povo ia pra emergência por uma doença qualquer e acabava ficando por causa das coisas que eu ia quebrando, de braço a costela. Mas ainda assim ninguém queria desistir. Quando eu taquei uma cadeirada nas costas de um cara com enfisema pulmonar, as enfermeiras chamaram a polícia...

Mauro riu pelo nariz.

- Tu se ferrou bonito!

- Só não apanhei porque um monte de velhinhos se juntou pra me defender. Eles não queriam deixar me levarem e ficavam dizendo que estavam na fila e que eu não saía de lá enquanto não tivesse atendido todo mundo. Quase rola spray de pimenta e tudo, mas aí as enfermeiras conseguiram acalmar o povo e eu fui pra delegacia.

- Que merda, cê quis ajudar o povo e acaba indo preso.

- Nenhuma boa ação fica sem punição, meu caro.

- Mas quando que cê ia imaginar que ia chegar a esse ponto?

- Até cheguei a pensar, no começo, mas me empolguei batendo nos doentes e resolvi continuar. No fim das contas, cada escolha é uma renúncia.

- Sim, me conta de novo: como foi com o delegado?

Isaac riu baixo. Apesar de tudo, ele ainda conseguia achar graça de toda aquela situação. Sempre teve uma queda pelo humor negro.

- Expliquei tudo e o cara não sabia se me acusava de charlatanismo, agressão física ou tentativa de homicídio. Eu disse que charlatanismo não servia, afinal eu curava as pessoas mesmo. Ele não acreditou e mandou chamar um policial lá com uma virose qualquer. Disse que queria ver com os próprios olhos. Veio um cara que dava dois de mim. Se eu batesse na cara dele era certeza dele devolver a porrada e eu ir parar longe. Acertei um soco no braço dele e foi o suficiente: ele ficou curado e eu continuei com todos os dentes da boca.

- Foi aí que te soltaram?

Um rapaz de camisa listrada andava na mesma calçada que eles, vários metros à frente. Ele parou e começou a procurar algo na mochila, apressado.

- Nem! O delegado disse que fazia um acordo comigo: se eu conseguisse curar a sogra dele e prometesse não quebrar mais nada de ninguém depois, ele me liberava. Mas primeiro ele precisava ir pra casa conversar com a mulher dele e explicar a situação. Se ela topasse, eu ia lá depois. Passei a noite na cadeia por causa disso.

- E aí, como foi dormir no xadrez?

- Vixi! Uma vez só e nunca mais! Doze macho numa cela que era pra caberem quatro! Fiquei a noite toda com o rabo encostado na parede. Pior noite da minha vida. Mas no outro dia o delegado me chamou de novo e disse que o trato tava feito. Falou que a velha tinha problema nos rins e precisava de transplante. Era tão grave que corria o risco de eu matar ela de pancada e não resolver o problema. Por isso que ele falou com a mulher dele: foi ela que tomou a decisão.

- E o resultado...

Estavam mais perto do rapaz de camisa listrada e viram que ele segurava uma bombinha contra asma. Respirava com dificuldade.

- Curei a velha, mas ela tá no hospital em coma... Os médicos dizem que tem chances dela se recuperar, mas que vai levar um bocado de tempo.

- E o delegado disse o quê?

- Que saiu melhor que a encomenda: ele se livrou da sogra, que ele detestava, mas como a velha não morreu, a mulher dele não ficou puta da vida a ponto de rolar divórcio. Quando ela tentou culpar ele pela merda, tudo que ele disse foi “A decisão foi sua. Você fez sua escolha, e toda escolha é uma renúncia”.

- E você?

- Tô livre. Mas já fiz minha escolha: renuncio ao cargo de alto milagreiro de Salvador, nunca mais vou curar nada que uma simples bengalada não resolva. 

Estavam a dois passos do rapaz de camisa listrada. Isaac segurou o guarda-chuva pela ponta.


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Sobre este conto


Dois dias no fim de Julho de 2013 me foram suficientes pra concluir este conto. Imaginei a cena inicial em um dia nublado enquanto andava na rua e vi uma senhora igual à que descrevi no início da estória. Mas antes que você pergunte: eu não bati nela com meu guarda-chuva!

Aqui meu desafio foi escrever diálogos. E como eles são difíceis de escrever! Você tem que fazer um bom esforço consciente para que os personagens não soem todos iguais a... você mesmo. É um exercício de deixar suas múltiplas personalidades tomarem conta. Pensei em usar uma linguagem bem coloquial achando que isso facilitaria o processo, mas só fez dificultar. Quando falamos, repetimos palavras e usamos construções que não ficam bem quando escritas, deixam o texto maçante e ele parece mal-escrito. Evitar isso sem recorrer a um vocabulário muito rebuscado (o que tiraria a naturalidade das falas) é bem complicadinho. Também tive que lutar contra o impulso de corrigir todos os "cê" e "tá" e as faltas de concordância, o que deixaria o texto mais limpo, mas que não faria ninguém acreditar que realmente havia dois jovens soteropolitanos de classe média conversando na sua frente.

Relendo esse texto, eu percebo que fui inconscientemente influenciado por um dos meus filmes (inspirado em um livro) favoritos: Laranja Mecânica. Afinal de contas, onde mais você vê um jovem batendo em velhinhos com uma bengala na companhia de um amigo não muito inteligente? Mas pelo menos o Isaac tem melhores intenções...

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